Naomar Monteiro de Almeida Filho, reitor da UFBA, explica projeto da Universidade Nova
O projeto, idéia capitaneada pela própria UFBA, já ganhou a adesão de 17 outras instituições federais
O reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Naomar Monteiro de Almeida Filho, é um homem corajoso. Sem papas na língua, aponta diversos defeitos do sistema de educação superior brasileiro e defende mudanças radicais.
Sem se importar muito com o projeto de reforma universitária, enviado pelo governo ao Congresso Nacional, propõe uma verdadeira revolução. Em seu projeto Universidade Nova, quer que os estudantes entrem nas instituições federais de ensino superior sem vestibular. "Esse tipo de seleção não é compatível com a Universidade Nova e, portanto, não terá uso", diz o reitor.
Baseado nos ideais de Anísio Teixeira que deram origem, na década de 1930, à então Universidade do Distrito Federal e, na década de 1960, à Universidade de Brasília (UnB), Monteiro defende que os estudantes entrem nas universidades sem vestibular para fazerem um ciclo básico de formação que duraria três anos e teria o nome de Bacharelado Interdisciplinar (BI).
Daí poderiam seguir para os níveis de formação Profissional, Licenciatura e para as pós-graduações acadêmicas (mestrado e doutorado) e profissionais (mestrado acadêmico, que assumiria o atual papel desempenhado pelos cursos de especialização lato sensu).
O reitor da UFBA apresentou sua proposta da Universidade Nova à comunidade acadêmica da UnB na manhã de quinta-feira, 14 de dezembro, a convite do reitor da instituição, Timothy Mulholland, ocasião na qual também concedeu entrevista à "UnB Agência" para detalhar melhor a idéia.
Segundo Monteiro, ainda falta um consenso mínimo para que os dirigentes possam apresentá-la formalmente a seus conselhos universitários, mas a intenção é que isso seja feito, nas 17 instituições envolvidas, até o final do primeiro semestre de 2007. Ele revela que há uma certa pressa 'estratégica' para essa discussão.
"O Brasil já sofre com atraso tecnológico. Dentro em pouco, quando o sistema europeu se unificar - e a data para isso é 2010 com o fim do Processo de Bolonha -, não teremos interlocutores entre os países desenvolvidos em relação à compatibilidade de nossa estrutura curricular", alerta o reitor da UFBA.
Ele reconhece que o projeto Universidade Nova em nada dialoga com a reforma universitária postulada pelo governo, mas acredita que a atual autonomia de que gozam as instituições federais de ensino superior permite a adoção da iniciativa. Confira os detalhes sobre o novo sistema e outras opiniões de Naomar Monteiro de Almeida Filho na entrevista concedida à "UnB Agência":
O senhor considera o sistema brasileiro de educação superior obsoleto?
Monteiro - Sim. Além de obsoleto, acredito que se desenvolveu sobre uma série de distorções. Não é somente antiquado, mas também enviesado, não cumprindo as finalidades da formação universitária e perdendo sua capacidade de cumprir a formação profissional.
O que nesse modelo provoca esses problemas?
Monteiro - Primeiro, os princípios conceituais, que eram modernos em 1810, mas que, em 2006, estão completamente ultrapassados. É a idéia de que o conhecimento é um bloco que pode ser quebrado em pedaços e, depois, em estruturas menores ainda até chegar ao tamanho do que chamam uma disciplina, que, na verdade, é uma secção do corpo de conhecimento. Há muito tempo se sabe que o conhecimento é uma rede complexa de métodos e objetos. Essa é a raiz conceitual da obsolescência do sistema. A segunda é a própria questão da história. O modelo de formação da universidade brasileira é baseado no europeu-mediterrâneo do século 19. Curiosamente, nós o mantemos, apesar de a própria Europa já o ter superado há muito tempo. Não fomos capazes de atualizar nosso sistema de ensino superior.
O projeto Universidade Nova mudará a cara das universidades?
Monteiro - A intenção é justamente essa. É uma proposta que tem um radicalismo implícito e propõe uma reestruturação pela raiz. Não é uma mudança cosmética, mas sim de fundo. Se não for assim, é possível que o sistema velho sobreviva mesmo confirmando suas distorções. Nossa intenção é o contrário: que a transformação seja estrutural e não somente de focos ou formas.
O senhor acredita que esse processo acabará com o vestibular como o conhecemos?
Monteiro - Sim, apesar de o objetivo não ser esse. O que chamamos de vestibular é um teste unificado para seleção de sujeitos para a universidade em toda a diversidade de áreas de formação que ela tem, com diferentes graus de competitividade. Acredito ser absolutamente ilógico ter um único teste para dar conta disso tudo. Esse tipo de seleção não é compatível com o projeto da Universidade Nova e, portanto, não terá uso. Para entrar no Bacharelado Interdisciplinar (BI), a primeira instância de formação superior, será necessário uma seleção de pessoas que tenham perfil mais aberto, que desejem experimentar coisas e vivenciar uma formação que vá além de uma mera formação profissional, que tenham interesse em uma formação na cultura universitária. Para esse perfil, o atual sistema de seleção, o vestibular, é inútil. Teremos de buscar ou desenvolver alguma outra forma para isso.
Como será a seleção?
Monteiro - Uma das idéias é uma atualização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com ajuste aos objetivos de selecionar para essa Universidade Nova. Essa hipótese tem sido avaliada, mas reconhecendo alguns de seus defeitos atuais. Ele tem a vantagem de não ser um teste baseado no acúmulo de conhecimento, mas sim na capacidade de análise, interpretação e expressão. Por exemplo: todos os dados ou as informações necessárias para resolver as questões do Enem, por regra, são incluídos no enunciado, não exigindo memorização. Mas ele tem um problema: grau reduzido de estabilidade, mudando muito de ano a ano. A idéia é introduzir mais estabilidade. Uma das possibilidades em aberto é fazer com que as universidades que participam da Universidade Nova componham o conselho técnico - previsto na normatização do Enem, mas nunca implementado - responsável pela qualidade de conteúdo da seleção.
Quais são os potenciais focos de resistência a essa idéia?
Monteiro - O primeiro, certamente, é a indústria do vestibular que já constitui um setor privado muito poderoso que opera sobre a competitividade. Esse é um processo que, ao ampliar a oferta, reduz a competição. Certamente, os alunos de escola privada continuarão tendo acesso à universidade, mas também os de escola pública. Outro foco que, aparentemente, pode mostrar resistência são os próprios docentes das instituições, grupos que têm quatro gerações de intelectuais formados nessa realidade atual e que não conhecem outra realidade. Além disso, temos o setor privado de ensino superior. A Universidade Nova representará um avanço imenso em termos de matrículas no ensino público. Há uma expectativa de duplicar a oferta de vagas caso todo o sistema federal adote essa proposta. É um salto histórico porque a cada ano a representatividade do setor público na oferta de matrículas tem caído.
As universidades têm preparo para receber esse aporte de alunos a mais?
Monteiro - Não, mas aí a questão é decidir qual é a direção dos investimentos para expansão. É possível expandir a universidade velha, que temos hoje, ou investir no modelo novo. Se a opção for investir no sistema antigo, ela pode até ganhar um certo oxigênio ou sobrevida e aí sua obsolescência não ficará tão evidente. Acredito que o país terá de tomar uma decisão: ou investir num sistema de pouca eficiência ou testar um que corrija isso. Com o modelo atual, será muito difícil chegar a um pleno acesso, porque ele foi construído para ser elitista. Por isso, estamos preocupados em garantir que a Universidade Nova retifique esse caráter. É uma decisão de política no sentido estratégico. Se a escolha for o novo modelo, não será necessário investir tanto para universalizar o acesso.
O Brasil está preparado para um modelo tão arrojado?
Monteiro - O país está atrasado. Já perdemos duas oportunidades históricas para implantá-lo. A primeira, na década de 1930, com o projeto de Anísio Teixeira para a então Universidade do Distrito Federal, que teve uma repressão política forte, mas não tão cruenta. A segunda, na década de 1960, que foi o modelo UnB (o original, com a contribuição de Darcy Ribeiro). Esse teve uma repressão brutal, uma das páginas mais violentas no sentido intelectual de abafar a experiência que se propunha. Agora, temos uma conjuntura completamente diferente. Não vivemos num regime totalitário e, de certa forma, o resto do mundo nos chama à responsabilidade de termos um sistema de formação universitária com algum grau de compatibilidade com as principais matrizes intelectuais, culturais, artísticas e tecnológicas do mundo.
O novo modelo tem maior interface com sistemas internacionais?
Monteiro - Sim e é uma das maiores motivações para tomarmos essa iniciativa. O Brasil já sofre com atraso tecnológico. Dentro em pouco, quando o sistema europeu se unificar – e a data para isso é 2010 com o fim do Processo de Bolonha -, não teremos interlocutores entre os países desenvolvidos em relação à compatibilidade de nossa estrutura curricular. Temos problemas sérios nesse sentido com o sistema norte-americano, por exemplo. Nossa lógica de formação é incompatível. Com a transformação na Europa, isso alcançará todos os países desenvolvidos. Esses dois modelos, norte-americano e europeu, já cooptam o dos países do sudeste asiático, Oceania, até China e Japão. Todos têm sistemas compatíveis com a lógica de entrar na universidade em formação geral. Só o Brasil mantém o modelo do século 19, que é a entrada direto nas profissões. Não vejo motivo para permanecermos lá quando o mundo todo já está no século 21.
A Universidade Nova permitirá maior integração com a pós-graduação?
Monteiro - Esse é outro defeito do nosso modelo atual, herdado da 'famosa' reforma universitária de 1968. Foi uma imposição do regime militar tentando transformar o sistema brasileiro no norte-americano. Não foi removido o velho regime. Então, mantivemos, na graduação, a Europa do século 19 e na pós-graduação uma imitação do que era feito nos Estados Unidos. O grau de desarticulação é total. É praticamente impossível um aluno de graduação cursar disciplinas na pós-graduação, mesmo que mostre desempenho para tanto. Ao mesmo tempo, ninguém da pós aceita ter cursos num nível de graduação. Isso não é nivelamento. A estrutura universitária precisa ser integrada como o é em outros países do mundo. Trago essa experiência da minha própria pós-graduação, quando convivi na mesma sala com alunos de graduação, mestrado e doutorado e, em alguns casos, até gente em estágio pós-doutoral e extensão.
A partir de quando esse modelo pode ser aplicado?
Monteiro - A expectativa é que, no primeiro semestre de 2007, as 17 universidades interessadas tenham condição de apresentar a seus conselhos as respectivas propostas ou anteprojetos. A idéia é que não trabalhemos no modelo da imposição, de cima para baixo. Por isso, não temos pretensão de refazer o projeto de lei da reforma universitária que está no Congresso Nacional. Todos que estão envolvidos na concepção da Universidade Nova têm consciência da autonomia das universidades, que podem implantar. Estamos buscando fazer isso em rede, de preferência, toda a rede pública federal. Claro que isso leva tempo, mas acredito que é melhor atrasar um pouco a implantação para aprofundarmos detalhes e discuti-los, a ponto de ter um consenso mínimo geral, do que por pioneirismo alguém sair na frente e fazer algo que não será adotado pelo conjunto. Uma vez iniciado o processo, é inevitável que a transformação venha.
De que forma essa movimentação iniciada na UFBA conversa com o projeto de reforma universitária enviado pelo governo ao Congresso Nacional?
Monteiro - Na prática, não dialoga. Acreditamos que reforma universitária não se faz só por projeto de lei. As leis podem garantir condições para a transformação acadêmica. Temos o cuidado de não chamar esse projeto de reforma, mas sim de reestruturação da estrutura curricular da educação superior no Brasil, para ser preciso. Com a autonomia, é possível fazer isso, mas a questão é fazer de maneira sistêmica e não em poucas instituições. Esse projeto é plenamente acolhido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e há sete pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) já prevendo essa formação básica e as demais transformações. Não há impedimento legal. Só falta consenso para implantarmos. Um dos problemas da universidade brasileira é estar submetida ao aparato legislativo, como se fosse necessário ter leis para que ela funcione como deve. Isso é uma renúncia ao protagonismo e à autonomia.
Essa mudança na universidade acarreta alteração de perfil nos demais níveis de ensino no país?
Monteiro - A expectativa é essa. Ao implantarmos o vestibular, toda a formação dos sujeitos passa a ser feita de acordo com esse sistema de seleção. Se reestruturarmos a instituição a ponto de não precisarmos mais dele, o que acontecerá é a eliminação da pressão inadvertida que fazíamos sobre o ensino básico, que então poderá cumprir as finalidades pedagógicas para as quais foi implementado.
O bacharelado interdisciplinar, por si só, já é um patamar de graduação superior?
Monteiro - Sim, com duração de três anos. A formação profissional é posterior a ele e o tem como pré-requisito. O BI tem um primeiro componente, concentrado no primeiro ano, de formação geral. Essa formação exporá os sujeitos a temas variados, como história da arte, história da ciência, expressão artística (os alunos optarão entre música, dança, belas artes, teatro, cinema). Os alunos poderão escolher mais ou menos opções, mas é obrigatório. Além disso, haverá cursos tronco, que durarão todos os três anos do BI. Exemplo disso é a área de língua e literatura brasileira, que resultará em um domínio da expressão escrita no idioma. Não é possível qualquer profissional escrever relatórios e documentos com erros de português. O outro tronco é o de língua moderna, para ampliar o acesso a uma segunda língua, ainda que em nível instrumental, em especial aquelas que facilitam a comunicação no mundo. É inadmissível que isso não faça parte da formação.
O que acontece depois?
Monteiro - O segundo bloco é o vocacional, quando o aluno é exposto a um elenco de vários cursos, todos optativos e não obrigatórios, de introdução às profissões: medicina, artes, psicologia, direito, engenharias, arquitetura... Isso dará conta da prática profissional, com visitas a conselhos, conhecimento e vivências na realidade do graduado, de forma que, ao passar por esses componentes vocacionais, o aluno tenha condição e informação suficiente para fazer sua escolha de carreira com mais maturidade, e não como acontece atualmente, em que isso é feito antes mesmo de entrar na universidade e ainda muito jovem, com 16, 17 ou 18 anos.
O que acontece no terceiro ano do BI?
Monteiro - Esse é o bloco pré-profissional, que pode começar desde o primeiro ano se o aluno tiver desempenho muito forte nas disciplinas gerais conseguindo rendimento que priorize sua busca pelas disciplinas do curso que pensar ser sua vocação. Isso, no entanto, não garante que ele será selecionado para o curso, mas se for, poderá carregar esses créditos com ele. Além disso, permitirá uma maior integração entre o nível BI e os demais. Pode também caber, e isso merece destaque, que o aluno não faça nenhuma disciplina profissional, já que isso é optativo. Ele pode estudar apenas a formação geral durante os três anos do BI. Isso não diminui a qualidade de sua formação: ele sairá formado em cultura universitária, saindo Bacharel em Tecnologias; Bacharel em Artes; Bacharel em Humanidades... Isso garante a possibilidade de uma formação menos bitolada e disciplinar e as pessoas precisam ter o direito de sair da universidade sem profissão. Atualmente, isso é algo utópico. O respeito às escolhas do BI é o oposto da lógica do curso profissional atual, no qual os alunos não têm escolha, cursam apenas o menu que já vem pronto.
Quais são as demais instâncias?
Monteiro - São três: o aluno portador do diploma do BI, ao final dos três anos de formação, pode tentar seleção de mestrado acadêmico, licenciatura ou formação profissional de curta, média ou longa duração. A idéia é que esse ciclo concentre as atividades práticas da formação já que o básico foi feito no BI. Esse compartilhamento de formação entre áreas feito no primeiro patamar é útil porque a universidade atual tem reproduzido erros, como a área de Saúde não ter Humanidades, a do Direito não ter Matemática... e assim por diante. Finalmente, o terceiro ciclo, que é o da pós-graduação. Há uma proposta muito explícita de preencher a lacuna que atualmente é ocupada pelas especializações, diretamente com os mestrados profissionais. Isso permitirá uma aproximação maior entre a graduação e a pós-graduação de forma que todas as áreas tenham o que a Medicina já tem com a residência: uma formação complementar especializada.
Não existe o risco de transferir para o ambiente interno a seleção que atualmente é feita pelo vestibular na hora de sair do BI para os demais níveis?
Monteiro - Essa é justamente a intenção. Não tem nenhuma lógica, nem política nem acadêmica, de ter uma seleção por critério, mérito, habilidade, talento, competência, vocação, aptidão fora da universidade. Ao permitirmos que isso aconteça fora, ela torna-se muito mais social e política do que por mérito. Ao trazê-la para dentro, teremos maior controle acadêmico sobre a qualidade e a competência, valores que fazem parte da universidade. Até o momento, temos praticado uma certa omissão e ao fazermos isso temos deixado que processos sociais, em sua maioria, espúrios e excludentes, predominem sobre o talento das pessoas. O projeto Universidade Nova defende claramente que as instituições assumam essa responsabilidade, fazendo o processo de seleção internamente. (UnB Agência)