Programação de Teatro
A belíssima fabula de Xuá-Xuá, a fêmea
pré-humana que descobriu o teatro
Xuá-Xuá viveu há dezenas de milhares de anos, quando as pré-mulheres e os pré-homens ainda vagavam pelas montanhas e pelos vales, à margem dos rios e dos mares , pelos bosques e florestas , matando outros animais para se alimentar, comendo plantas e frutas , protegendo-se do frio, morando em cavernas. Isso foi muito antes de Neandertal e Cro-magnon, antes do Homo Sapiens e do Homo Habilis, que já eram quase humanos na aparência, no tamanho do cérebro e na imensa crueldade.
Xuá-Xuá era a mais bela das fêmeas de sua horda e Li-Peng, três anos mais velho o mais forte dos machos. Naturalmente eles se sentiam atraídos um pelo o outro, gostavam de ficar juntos, de nadar juntos, de subir em arvores juntos , sentir os odores mútuos, se lamber,tocar,abraçar,fazer sexo juntos, sem saber ao certo o que estavam fazendo.Era bom estra um com o outro. Juntos.
Eram tão felizes,tão felizes quanto dois pré-humanos podiam sê-lo.
Um belo dia, Xuá-Xuá sentiu que seu corpo se transformava: seu ventre crescia mais e mais ,além da elegância. Ela tornou-se tímida , teve vergonha daquilo que se passava com seu corpo, e decidiu evitar Li-Peng. E Le não compreendia nada do que se passava . Sua Xuá-Xuá não era mais a Xuá-Xuá que ele amava, nem no físico nem no comportamento. Os dois amantes se distanciaram. Xuá-Xuá preferiu ficar só, vendo seu ventre inchar.
Li-Peng, abandonado ,decidiu caçar outras fêmeas,mas sem nenhuma esperança de encontrar nenhuma outra parecida com o seu primeiro amor.
Uma noite Xuá-Xuá sentiu seu ventre se mexer: quando estava prestes a dormir, o ventre começou a balançar da esquerda para a direita sem obedecer a sua vontade.Com o passar do tempo, seu ventre inchava mais e mais ,sacudindo,involuntário, por conta dos chutes de pequeninos pés importunos. Li-Peng, de longe,assistia Xuá-Xuá com tristeza e curiosidade. Observava-a imobilizado. Expectador educado.
Dentro do ventre da mãe, Lig-Lig-Lé( assim se chamava o menino),crescia e se desenvolvia. Não podia , distinguir os limites do seu próprio corpo: seria a superfície de sua pele o limite do seu corpo?Ou se estenderia até os limites do corpo de usa mãe? Seria isso o mundo , o que se estendia alem do corpo de sua mãe?
Alguns meses depois, durante uma linda manhã de sol Xuá-Xuá deitou-se a margem de um rio e deu a luz a um menino. De longe , Li-Peng a observava,escondido atrás de uma arvore,incapaz de qualquer ação. Expectador amedrontado!
Era pura magia! Xuá-Xuá olhava o seu bebê, sem compreender aquilo que tinha surgido dentro dela. Aquele corpinho minúsculo ,que parecia com o seu,era sem duvida uma parte sua,que antes estava dentro dela e agora estava fora. Mãe e filho eram a mesma pessoa. A prova disso era que aquele pequeno corpo queria retornar incessantemente retornar a ela, juntar seu pequeno corpo ao grande corpo, sugar seu seio para recriar o cordão umbilical. Pensando assim ela se acalmava: os dois eram ela mesma, e ela era os dois. De longe Li-Peng observava. Bom expectador.
O bebê se desenvolveu rapidamente : aprendeu a andar sozinho, a comer outros alimentos, além do leite de sua mãe. Tornou-se mais independente. Algumas vezes , o pequeno corpo não obedecia mais ao grande corpo. Xuá-Xuá ficou aterrorizada. Uma verdadeira rebelião de uma parte de seu corpo. ela olhava os seus dois "eus": o ela-mãe e o ela-criança. Os dois eram ela mesma; mas a parte pequena era desobediente,travessa e malcriada.
Uma noite, Xuá-Xuáestava dormindo. Li-Peng ,curioso,observava. Não conseguia entender a relação entre Xuá-Xuá e seu filho, e queria criar sua própria relação com o menino. Quando Lig-Lig-Lé acordou, Li-Peng tentou atrair sua atenção. Xuá-Xuá ainda dormia quando os dois (pai e filho) partiram, como bons companheiros. Desde o inicio, Li-Peng soube perfeitamente que ele e Lig-Lig-Lé eram duas pessoas diferentes, pois não sabia que Lig-Lig-Lé era seu filho. Ele era ele e a criança era o outro.
Ensinou o menino a caçar, pescar e etc. Lig-Lig-Lé estava feliz. Xuá-Xuá, ao contrario, ficou desesperada quando acordou e não viu o pequeno corpo o seu lado. Chorava cada vez mais e com maior sofrimneto, porque perdera uma parte bem-amada de si mesma. Gritava e gritava, entre vales e montanhas, esperando que seus gritos fossem ouvidos, mas Li-Peng e Lig-Lig-Lé estavam longe demais para ouvi-la, e quando a ouviam mais se afastavam.
Depois de alguns dias Xuá-Xuá os reencontrou. Tentou recuperar o filho, mas o pequeno corpo disse não, porque agora ele estava feliz com seu pai, que lhe ensinava coisas que sua mãe ignorava.
Ouvindo o peremptório " Não!", Xuá-Xuá foi obrigada a aceitar que aquele pequeno corpo, mesmo tendo saído de seu ventre ,era também outra pessoa com seu próprios desejos e vontades. A recusa de Lig-Lig-Lé em obedecer a sua mãe levou-a a compreender que eles eram dois, e não apenas um. Ela não queria estar perto de Li-Peng ; no entanto,esse era o desejo de Lig-Lig-Lé: cada um havia feito a sua própria escolha. Então havia duas escolhas possíveis,duas opiniões,dois sentimentos diferentes:isto é duas pessoas ,dois indivíduos.
Esse reconhecimento levou Xuá-Xuá a olhar ara si mesma e a ver-se apenas como mulher,uma mãe , uma dos dois: obrigou-a a se identificar e identificar os outros. Quem era ela?Quem era o filho e Li-Peng?Onde estavam e para onde iam? E quando? E agora? E amanhã? E depois? Teria ela outros homens, assim como Li-Peng tivera outras mulheres?E seriam todos predadores como Li-Peng? O que aconteceria se seu ventre inchasse outra vez? Xuá-Xuá procurava respostas. Procurava a si mesma, se olhava: ela e os outros ela e ela mesma;aqui e lá,hoje e amanhã.
Ao perder o filho, Xuá-Xuá encontrou-se a si mesma e descobriu o teatro. Então, ela foi ao mesmo tempo atriz e expectadora. Agia e se observava.
Fabula extarida do prefacio do livro "Jogos para atores e não-atores" de Augusto Boal.
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